Você tem um lado na discussão recente
sobre o governo do PT, um lado que você crê fortemente que deva ser
defendido? Considera o outro lado uma mistura que contém apenas
burros e gente defendendo o próprio interesse? Seja o seu lado
contra ou a favor, algo que você precisa saber é que, no momento em
que você escolheu defender um dos lados e se identificar com ele,
você, infelizmente e sem saber, comprometeu seriamente sua
capacidade de analisar corretamente o problema. E, se você for uma
pessoa inteligente, esse comprometimento pode até ser ainda mais
sério. É um fenômeno observado em experimentos de Psicologia
Cognitiva, não é sua culpa, é uma consequência de como nós, humanos, somos. Mas é algo que você realmente deveria saber.
Infelizmente, uma explicação completa
com os detalhes de como raciocinamos em geral, de como argumentamos e
de como isso deveria ser feito é bastante longa. Do tamanho de um
livro. As partes da discussão existem em lugares diferentes, mas
não sei de um lugar já publicado que inclua todas estas questões.
Também por isso, no começo desse ano, eu terminei de escrever um
livro sobre conhecimento e crenças. Ele só existe na versão
rascunho e está submetido para publicação no momento, enquanto
alguns amigos leem essa versão rascunho. Às vezes comento algo
sobre o que está ali em uma rede social, mas acho que, como ele
ainda não está acessível, tenho usado informações que estão lá
em discussões menos do que eu poderia ou deveria. Não que a maior
parte do que está lá seja original. Em termos de páginas, a maior
parte é um longo contar de resultados, alguns bastante recentes,
outros não, em áreas tão distintas quanto Psicologia Cognitica,
Lógica, Indução Probabilística, Filosofia da Ciência e efeitos
de interações em sistemas sociais complexos. O que torna o livro
significativo é que, após juntar tudo, algumas conclusões se
tornaram óbvias para mim e, espero que tenha feito um bom trabalho
ali de mostrar o como de fato são óbvias. Mas, enquanto essas
conclusões são frequentemente mencionadas em uma versão fraca,
nunca as vi na versão mais forte a que cheguei, o que é a
contribuição central do livro (e o motivo pelo que penso ele venha
a ser uma obra importante em qualquer discussão sobre o pensamento e
o que sabemos). Em particular, ele traz algumas conclusões
importantes que são de aplicação óbvia na política. Com toda a
palhaçada atual e a incompetência generalizada do debate, causada
pelo sermos humanos frequentemente apesar e não por causa da
incompetência do debatedor, acabei concluindo ser melhor fazer minha
parte e comentar o que der. Ainda que seja só para desabafar sobre
toda a burrice do debate, induzida pelas crenças e o tomar partido
de gente que é, na verdade, inteligente.
O livro foi escrito em inglês pois
julgo importante demais para terminar restrito a um país não muito
relevante (e trazer para uma tradução, mais tarde, é muito mais
fácil que fazer o caminho inverso). No blog, há um pouco mais de um capítulo dele, mas a versão final ainda vai passar por revisões. Ele começa assim:
“Nós
todos temos nossas crenças. Nós discordamos sobre elas, mas até
hoje sempre pensamos que seria certo defendê-las. Defendemos não
apenas nossas preferências, as formas como gostaríamos que nossas
vidas e sociedades se organizassem, as coisas que representam o que
preferimos e que não tem outro padrão para serem avaliadas além
dos nossos padrões individuais. Nós também aprendemos a defender
nossas ideias de como o mundo realmente é. Frequentemente, temos
opiniões em assuntos sobre os quais sabemos pouco ou nada. Espera-se
frequentemente que defendamos essas opiniões também. E elas podem
ser opiniões bem fortes. Organizamos partes da nossa sociedade ao
redor daqueles que defendem as mesmas ideias. Criamos argumentos para
defender nossas ideologias, nossas religiões, nossos grupos sociais.
Certeza é considerada uma qualidade, dedicação às descrições
pessoais que temos do mundo real, uma coisa boa. Respeitamos aqueles
que parecem ter certeza e duvidamos de quem mostra dúvida. Nós
pensamos que sabemos.
E
estivemos errados o tempo todo.”, André Martins, The
Stupidity of Beliefs, unpublished
Uma
das conclusões centrais é que ter certeza sobre qualquer afirmação
sobre como o mundo é (ao contrário de como você gostaria que ele
fosse, seus gostos são seus, afinal e
você sabe quais eles são)
não apenas é errado. É também desastroso. É
errado porque analisando por completo o problema do conhecimento, o
que não dá para fazer aqui, não há como obter provas sobre o
mundo real. Apenas
avaliações das
probabilidades de cada ideia e cada
teoria são possíveis. Sim,
várias vezes algumas ideias
tem
uma chance tão absurdamente
pequena de serem verdadeiras
que eu poderia encher uma ou várias folhas com os zeros necessários
para representar o número. Mas,
em muitas perguntas específicas, a incerteza que sobra é expressiva
e nem como primeira aproximação daria para ignorar várias
alternativas existentes.
Mas há
um outro problema. Esses
resultados mais recentes
deixam claro nossos
erros de argumentação. Outros nem tão recentes mostram como nosso
raciocínio intuitivo, que leva as coisas que sentimos que são
verdade sobre o mundo e problemas em geral, falha com frequência.
Analisamos bem problemas cujas respostas certas são bem conhecidas
por todos e fáceis. Mesmo quando elas ainda são fáceis, nossos
cérebros, sem um bom tanto de treinamento que não recebemos na
escola em lugar nenhum do mundo, erram e com frequência em problemas
novos.
Quando
juntamos as evidências sobre como somos e
comparamos com o como
deveríamos ser, é
possível ver que nós
organizamos nossa sociedade e nossas discussões de forma
completamente errônea, reforçando
as situações que nos induzem a não raciocinar corretamente.
Algo que os experimentos e
observações mostram é que
nossa capacidade de argumentação não existe para nos ajudar a
encontrar as respostas certas. Ao
menos essa não
é a
causa principal da
existência de nossa
capacidade de argumentação
ou, mesmo,
sua aplicação mais comum.
Até podemos usar argumentos
de forma correta e podemos
aprender a fazê-lo. Em geral, infelizmente, não é o que acontece.
Se isso
é uma consequência da evolução ou fomos educados para usar
a argumentação dessa forma,
ou se a causa é uma
provável mistura das duas coisas, não sabemos ainda. O que tem
ficado claro – e é engraçado pensar o quão óbvio isso é e o
quão pouco ou nada se diz sobre – é que argumentamos para
reforçar nossos grupos, para convencer nossos aliados. Ou
conseguimos liderar nosso
grupo ou preferimos
nos ajustar
ao grupo, quando alguma
ideia nossa
não é
aceita. Estar certo é quase irrelevante nesse contexto. Continuar
a pertencer a um grupo que você usa como identificação pessoal é
praticamente tudo que importa. Os
argumentos que concordam com sua conclusão, você (e todo mundo)
aceita sem pensar. Os que discordam, você analisa até achar algum
problema. Mesmo que o problema seja irrelevante, que você precise
atacar o proponente ao invés de responder o argumento.
E há
mais. Pessoas mais inteligentes, assim como pessoas mais treinadas,
nós esperaríamos, deveriam ser capazes de chegar mais facilmente a
respostas corretas. Mas, quando elas tem uma crença que defendem, o
que se observa é que essa capacidade adicional significa uma maior
capacidade não de análise, mas de defesa. De achar argumentos que
seu grupo aceite, ou que, no
máximo, pessoas
indecisas
não treinados em Lógica
considerem bons. Raciocinar e argumentar sobre crenças que você
defende é sobre pertencer ao grupo, liderando-o quando der, mas
sempre pertencendo. Não é sobre estar certo, não é sobre o que é
melhor para todos, não é sobre competência. E
isso inclui não apenas o grupo que você acha estar errado e aqueles
que pertencem àquele grupo. Isso inclui o seu grupo e inclui o seu
raciocínio.
No
caso do debate atual, as evidências de se você se tornou vítima
desse fenômeno são claras. Se você classifica quem defende o outro
lado como sendo burro ou vendido, você é uma vítima do seu cérebro
e sua necessidade de ser aceito pelo seu lado. Isso não quer dizer
que não existam burros e vendidos, eles existem dos dois lados e
talvez até sejam comuns. É
facílimo achar manifestações incompetentes de ambos os lados, o
que, para o lado oposto parece apoiar suas ideias. Não apoia, não é
nos incompetentes que você deveria prestar atenção, a menos que
queira se igualar a eles.
Mas há
também argumentos sérios em ambos os lados, que deveriam ser
pensados sem paixão. Sem
desqualificar o proponente, mesmo se você sente que a pessoa merece
ser criticada. Há ideias do outro lado que você deveria sim ouvir e
considerar e, algumas, aceitar. O seu lado não está certo em sua
totalidade. A pergunta, no caso, deveria ser sobre o futuro, sobre o
que é melhor para o país, para a sociedade, para você. Como cada
fator (sociedade ou você) conta, é decisão sua, mas apenas o
futuro pode ser mudado pelo que você fizer hoje então decisões são
sobre o futuro. E análises erradas, mesmo que o erro seja humano e
nada que deva deixar você com vergonha (afinal somos todos humanos e
erramos igual, se não aprendermos a identificar e corrigir nossos
erros), não vão ajudar você a mudar de decisão. Ouvir o outro
lado quando ele apresenta argumentos bem construídos e aprender com
ele seria um pequeno começo.
Mas o
melhor, para evitar o quanto o ser cérebro engana você, é não ter
lados. Pensar no que é melhor para o futuro, considerando todos os
argumentos e pontos de vista mais sólidos, se esforçar fortemente
para não se identificar com um lado ou outro. Ou você pode
simplesmente ser manipulado pelo lado que escolheu, ser um escravo
desse lado, em vez de
realmente pensar.
Durante
o segundo turno das eleições, houve um dia em que decidi distribuir
ais para argumentos sem conteúdo a favor da Dilma ou a favor do
Aécio. Não havia um único argumento a favor que não merecesse um
ai. Mesmo gente que deveria saber melhor passava raciocínios
incrivelmente burros desde que defendesse seu lado. Eu sonho com o
dia em que qualquer raciocínio burro seja ridicularizado e não
repetido ou compartilhado.
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