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Sunday, March 15, 2015

Nossa burrice coletiva


Você tem um lado na discussão recente sobre o governo do PT, um lado que você crê fortemente que deva ser defendido? Considera o outro lado uma mistura que contém apenas burros e gente defendendo o próprio interesse? Seja o seu lado contra ou a favor, algo que você precisa saber é que, no momento em que você escolheu defender um dos lados e se identificar com ele, você, infelizmente e sem saber, comprometeu seriamente sua capacidade de analisar corretamente o problema. E, se você for uma pessoa inteligente, esse comprometimento pode até ser ainda mais sério. É um fenômeno observado em experimentos de Psicologia Cognitiva, não é sua culpa, é uma consequência de como nós, humanos, somos. Mas é algo que você realmente deveria saber.

Infelizmente, uma explicação completa com os detalhes de como raciocinamos em geral, de como argumentamos e de como isso deveria ser feito é bastante longa. Do tamanho de um livro. As partes da discussão existem em lugares diferentes, mas não sei de um lugar já publicado que inclua todas estas questões. Também por isso, no começo desse ano, eu terminei de escrever um livro sobre conhecimento e crenças. Ele só existe na versão rascunho e está submetido para publicação no momento, enquanto alguns amigos leem essa versão rascunho. Às vezes comento algo sobre o que está ali em uma rede social, mas acho que, como ele ainda não está acessível, tenho usado informações que estão lá em discussões menos do que eu poderia ou deveria. Não que a maior parte do que está lá seja original. Em termos de páginas, a maior parte é um longo contar de resultados, alguns bastante recentes, outros não, em áreas tão distintas quanto Psicologia Cognitica, Lógica, Indução Probabilística, Filosofia da Ciência e efeitos de interações em sistemas sociais complexos. O que torna o livro significativo é que, após juntar tudo, algumas conclusões se tornaram óbvias para mim e, espero que tenha feito um bom trabalho ali de mostrar o como de fato são óbvias. Mas, enquanto essas conclusões são frequentemente mencionadas em uma versão fraca, nunca as vi na versão mais forte a que cheguei, o que é a contribuição central do livro (e o motivo pelo que penso ele venha a ser uma obra importante em qualquer discussão sobre o pensamento e o que sabemos). Em particular, ele traz algumas conclusões importantes que são de aplicação óbvia na política. Com toda a palhaçada atual e a incompetência generalizada do debate, causada pelo sermos humanos frequentemente apesar e não por causa da incompetência do debatedor, acabei concluindo ser melhor fazer minha parte e comentar o que der. Ainda que seja só para desabafar sobre toda a burrice do debate, induzida pelas crenças e o tomar partido de gente que é, na verdade, inteligente.

O livro foi escrito em inglês pois julgo importante demais para terminar restrito a um país não muito relevante (e trazer para uma tradução, mais tarde, é muito mais fácil que fazer o caminho inverso). No blog, há um pouco mais de um capítulo dele, mas a versão final ainda vai passar por revisões. Ele começa assim:

Nós todos temos nossas crenças. Nós discordamos sobre elas, mas até hoje sempre pensamos que seria certo defendê-las. Defendemos não apenas nossas preferências, as formas como gostaríamos que nossas vidas e sociedades se organizassem, as coisas que representam o que preferimos e que não tem outro padrão para serem avaliadas além dos nossos padrões individuais. Nós também aprendemos a defender nossas ideias de como o mundo realmente é. Frequentemente, temos opiniões em assuntos sobre os quais sabemos pouco ou nada. Espera-se frequentemente que defendamos essas opiniões também. E elas podem ser opiniões bem fortes. Organizamos partes da nossa sociedade ao redor daqueles que defendem as mesmas ideias. Criamos argumentos para defender nossas ideologias, nossas religiões, nossos grupos sociais. Certeza é considerada uma qualidade, dedicação às descrições pessoais que temos do mundo real, uma coisa boa. Respeitamos aqueles que parecem ter certeza e duvidamos de quem mostra dúvida. Nós pensamos que sabemos.

E estivemos errados o tempo todo.”, André Martins, The Stupidity of Beliefs, unpublished

Uma das conclusões centrais é que ter certeza sobre qualquer afirmação sobre como o mundo é (ao contrário de como você gostaria que ele fosse, seus gostos são seus, afinal e você sabe quais eles são) não apenas é errado. É também desastroso. É errado porque analisando por completo o problema do conhecimento, o que não dá para fazer aqui, não há como obter provas sobre o mundo real. Apenas avaliações das probabilidades de cada ideia e cada teoria são possíveis. Sim, várias vezes algumas ideias tem uma chance tão absurdamente pequena de serem verdadeiras que eu poderia encher uma ou várias folhas com os zeros necessários para representar o número. Mas, em muitas perguntas específicas, a incerteza que sobra é expressiva e nem como primeira aproximação daria para ignorar várias alternativas existentes.

Mas há um outro problema. Esses resultados mais recentes deixam claro nossos erros de argumentação. Outros nem tão recentes mostram como nosso raciocínio intuitivo, que leva as coisas que sentimos que são verdade sobre o mundo e problemas em geral, falha com frequência. Analisamos bem problemas cujas respostas certas são bem conhecidas por todos e fáceis. Mesmo quando elas ainda são fáceis, nossos cérebros, sem um bom tanto de treinamento que não recebemos na escola em lugar nenhum do mundo, erram e com frequência em problemas novos.

Quando juntamos as evidências sobre como somos e comparamos com o como deveríamos ser, é possível ver que nós organizamos nossa sociedade e nossas discussões de forma completamente errônea, reforçando as situações que nos induzem a não raciocinar corretamente. Algo que os experimentos e observações mostram é que nossa capacidade de argumentação não existe para nos ajudar a encontrar as respostas certas. Ao menos essa não é a causa principal da existência de nossa capacidade de argumentação ou, mesmo, sua aplicação mais comum. Até podemos usar argumentos de forma correta e podemos aprender a fazê-lo. Em geral, infelizmente, não é o que acontece. Se isso é uma consequência da evolução ou fomos educados para usar a argumentação dessa forma, ou se a causa é uma provável mistura das duas coisas, não sabemos ainda. O que tem ficado claro – e é engraçado pensar o quão óbvio isso é e o quão pouco ou nada se diz sobre – é que argumentamos para reforçar nossos grupos, para convencer nossos aliados. Ou conseguimos liderar nosso grupo ou preferimos nos ajustar ao grupo, quando alguma ideia nossa não é aceita. Estar certo é quase irrelevante nesse contexto. Continuar a pertencer a um grupo que você usa como identificação pessoal é praticamente tudo que importa. Os argumentos que concordam com sua conclusão, você (e todo mundo) aceita sem pensar. Os que discordam, você analisa até achar algum problema. Mesmo que o problema seja irrelevante, que você precise atacar o proponente ao invés de responder o argumento.

E há mais. Pessoas mais inteligentes, assim como pessoas mais treinadas, nós esperaríamos, deveriam ser capazes de chegar mais facilmente a respostas corretas. Mas, quando elas tem uma crença que defendem, o que se observa é que essa capacidade adicional significa uma maior capacidade não de análise, mas de defesa. De achar argumentos que seu grupo aceite, ou que, no máximo, pessoas indecisas não treinados em Lógica considerem bons. Raciocinar e argumentar sobre crenças que você defende é sobre pertencer ao grupo, liderando-o quando der, mas sempre pertencendo. Não é sobre estar certo, não é sobre o que é melhor para todos, não é sobre competência. E isso inclui não apenas o grupo que você acha estar errado e aqueles que pertencem àquele grupo. Isso inclui o seu grupo e inclui o seu raciocínio.

No caso do debate atual, as evidências de se você se tornou vítima desse fenômeno são claras. Se você classifica quem defende o outro lado como sendo burro ou vendido, você é uma vítima do seu cérebro e sua necessidade de ser aceito pelo seu lado. Isso não quer dizer que não existam burros e vendidos, eles existem dos dois lados e talvez até sejam comuns. É facílimo achar manifestações incompetentes de ambos os lados, o que, para o lado oposto parece apoiar suas ideias. Não apoia, não é nos incompetentes que você deveria prestar atenção, a menos que queira se igualar a eles.

Mas há também argumentos sérios em ambos os lados, que deveriam ser pensados sem paixão. Sem desqualificar o proponente, mesmo se você sente que a pessoa merece ser criticada. Há ideias do outro lado que você deveria sim ouvir e considerar e, algumas, aceitar. O seu lado não está certo em sua totalidade. A pergunta, no caso, deveria ser sobre o futuro, sobre o que é melhor para o país, para a sociedade, para você. Como cada fator (sociedade ou você) conta, é decisão sua, mas apenas o futuro pode ser mudado pelo que você fizer hoje então decisões são sobre o futuro. E análises erradas, mesmo que o erro seja humano e nada que deva deixar você com vergonha (afinal somos todos humanos e erramos igual, se não aprendermos a identificar e corrigir nossos erros), não vão ajudar você a mudar de decisão. Ouvir o outro lado quando ele apresenta argumentos bem construídos e aprender com ele seria um pequeno começo.

Mas o melhor, para evitar o quanto o ser cérebro engana você, é não ter lados. Pensar no que é melhor para o futuro, considerando todos os argumentos e pontos de vista mais sólidos, se esforçar fortemente para não se identificar com um lado ou outro. Ou você pode simplesmente ser manipulado pelo lado que escolheu, ser um escravo desse lado, em vez de realmente pensar.


Durante o segundo turno das eleições, houve um dia em que decidi distribuir ais para argumentos sem conteúdo a favor da Dilma ou a favor do Aécio. Não havia um único argumento a favor que não merecesse um ai. Mesmo gente que deveria saber melhor passava raciocínios incrivelmente burros desde que defendesse seu lado. Eu sonho com o dia em que qualquer raciocínio burro seja ridicularizado e não repetido ou compartilhado.